Fred e Juca, atrás da notícia
Carlos Motta

Fred e Juca desvendam
As máscaras da dor

CAPÍTULO 1

Fred cruzou com Juca no café. Não perdeu tempo:
– Toma rápido que temos de sair. Desta vez a viagem é longa.
– Ih, quando você fala assim, já sei que coisa boa não é. Pra onde vamos?
– Pro meio do mato.

Depois desse diálogo curto, os dois repórteres – Fred, um sujeito magro e alto escrevia as "matérias", como se chamam, na gíria do jornalismo, os textos; Juca, um cara baixo, nem gordo nem magro, meio nervoso, era o fotógrafo – passaram na sala do tráfego, pegaram as passagens de avião e combinaram se encontrar três horas mais tarde no aeroporto.
Destino: Belém.

Para quem estava acostumado a viajar, o voo foi tranquilo. Chato mesmo era o calor da cidade, a capital do Pará, porta de entrada da Amazônia. Os dois repórteres já tinham estado lá uma vez – e onde eles não estiveram em seus dez anos de carreira? – e portanto se conformaram.

O táxi rodou uns 30 minutos antes de deixá-los na recepção de um hotel de luxo.
– Epa, tô gostando disso – disse Juca logo ao sair do carro.
– Deixa de ser bobo que luxo vai ser só aqui mesmo – retrucou Fred. Vamos tomar um refresco no bar do hotel que eu vou explicar direito o que nós viemos fazer aqui.
– É bom mesmo, já que você dormiu a viagem inteira.

Os dois estavam sozinhos no bar. Fred, antes de começar a contar o motivo da viagem, perguntou a Juca:
– Você já viajou de barco?
Juca balançou a cabeça. Era um "não" bem óbvio.
– É um tédio só – continuou Fred. E depois, tem os mosquitos, o calor, o risco de pegar malária...
– Ah, pára de querer me botar medo, cara. Que malária, que nada, você sabe muito bem que sou vacinado, como você. Se não, nem teria vindo para cá...
Fred deu uma risada. Quando parou de rir, começou a explicar a missão:

– Você já deve ter ouvido falar da Agropecuária Celeste, daquele empreiteiro multimilionário, o dr. João Araripe das Neves. Ele tem esse negócio aqui no Pará, uma fazenda que é enorme, quase do tamanho de um país da Europa, para criar gado e plantar diversas culturas. O jornal quer que a gente entreviste o homem, que quase nunca fala para a imprensa e passa mais tempo neste fim de mundo do que lá em São Paulo, onde está a sede de sua construtora. O chefe disse que havia meses estavam pedindo uma entrevista para ele, querem um perfil dos negócios, as novidades, uma descrição da fazenda, enfim, uma matéria grande. O sujeito está esperando a gente, a entrevista está marcada, mas o interessante é que ele fez questão que fôssemos de barco e não de avião. Uma viagem de dois dias... O barco vem nos pegar amanhã.

Juca coçou a cabeça, terminou de tomar seu refresco de graviola, e encerrou o assunto:
– Já vi, então, que emoção mesmo, só nessa viagem de barco. Mas tomara que pelo menos o tal dr. João Araripe das Neves seja fotogênico.

CAPÍTULO 2

O barco não era o típico daquela região. Era moderno e veloz. Mesmo assim, a viagem parecia não ter fim.
– Juca, ainda não entendo por que o dr. João não quis que a gente fosse de avião até a sua fazenda.
– Não entendi também. Mas é bom a gente ficar de olhos bem abertos, porque já ouvi muitas histórias sobre como são as coisas nesta região, sobre como os milionários daqui fizeram fortuna. Mas essa fazenda é tão grande assim?
– Dizem que é enorme, mesmo. Tem até um aeroporto. O dr. João viaja toda semana para São Paulo. E não ia chegar a tempo de ver seus negócios lá se não fosse com seu próprio avião.
– E nós aqui neste barco, hein?

O diálogo foi interrompido pelo piloto da embarcação.
– Estamos chegando, gente. Podem ir pegar suas coisas que a fazenda é logo depois daquela curva.
Fred arrumou sua mochila e sua sacola de viagem. Nelas, estavam as suas "armas": um notebook e um celular. Os mais modernos que o jornal podia lhe dar. Juca não desgrudava de sua máquina fotográfica e de suas lentes, que enfrentavam todas as situações.
Mas, apesar de não haver dúvida de que ele era o fotógrafo, graças à parafernália de equipamentos pendurados no pescoço, Juca tinha outros truques na manga. Ou melhor, nos bolsos da camisa, da calça, do paletó – se estivesse usando um: as "pequeninas", como dizia, câmeras minúsculas que faziam o trabalho como gente grande. Para uma eventualidade, não cansava de explicar para o sempre perplexo Fred.

No ancoradouro estavam à espera dos dois uma loira toda sorrisos e um sujeito com cara de bobo. A loira era a secretária do dr. João. O sujeito se dizia assessor de imprensa. Ela se apresentou como Telma, ele como Roberto.

Depois das apresentações, Fred e Juca foram levados a um prédio, "nosso escritório central", como explicou o tal Roberto, que fez questão de dizer que o dr. João os receberia ali mesmo, em pouco tempo.
– Sabe como é, a fazenda é muito grande, tem muitas atividades diferentes, e o dr. João gosta de inspecionar pessoalmente tudo. Ele deve estar chegando e nós poderemos falar com ele daqui a pouco.
– Você também vai participar da entrevista?– perguntou Fred.
– Bem, faz tanto tempo que o dr. João não fala com a imprensa que achei que seria bom eu também ir com vocês...
– ...Para impedir que ele não fale nenhuma grande besteira – completou, zombeteiro, Fred.
– Não, não é isso... O dr. João sabe se cuidar e eu tenho certeza que vocês são ótimos profissionais. Mas, entenda, existem alguns assuntos delicados...
– ...Que você gostaria que não abordássemos, não é? – continuou Fred, novamente com um sorriso travesso no rosto.
– De jeito nenhum! – enfatizou Roberto. Tenho certeza que vocês falarão de tudo o que for importante.
– Pode ter certeza – asseverou Fred, dessa vez com uma expressão séria.

Juca acompanhou a conversa sem dar muita atenção. Seus olhos treinados de fotógrafo estavam interessados em outras coisas. Por exemplo, a decoração da sala em que se encontravam, uma mistura de objetos contemporâneos e urbanos com outros de uma cultura antiga, selvagem.
Telefones, computadores, intercomunicadores, conviviam, naquela sala, com arcos e flechas pendurados na parede, cestos servindo como guarda-troços e estatuetas de homens e de mulheres. Juca pegou uma delas, olhou-a com atenção e não gostou do que viu.
O rosto da pequena figura era cheio de detalhes. Um deles era uma boca retorcida, de medo e pavor.

CAPÍTULO 3


A sala escolhida para a entrevista era imensa, cheia de poltronas e cadeiras e com uma mesa escura no fundo. O dr. João entrou, olhou para todos os lados e cumprimentou friamente os dois repórteres, antes de se sentar na sua cadeira, atrás da mesa. Fred ficou na sua frente, Juca em pé, mexendo nos seus apetrechos fotográficos. O assessor de imprensa postou-se ao lado de Fred.

– Bem – começou o dr. João –, eu não sou muito de dar entrevistas, mas abri uma exceção para vocês, que trabalham num jornal muito importante. Estou à disposição.
Fred começou as perguntas, principalmente sobre como estavam seus inúmeros negócios e sobre vários comentários a respeito de alguns deles. O tema mais delicado eram as acusações de que sua construtora fizera obras superfaturadas em algumas capitais. O empresário foi polido, respondeu o que se esperava, e Fred aguardava o momento para tocar num assunto sobre o qual estava muito curioso.

– Gostaria que o sr. falasse agora sobre este lugar em que estamos. O que é esta fazenda, exatamente?
O dr. João explicou que desenvolvia nela um projeto integrado de agropecuária. Não deu muitos detalhes, o que fez a curiosidade de Fred aumentar.
– E sobre a mão-de-obra? Quantos funcionários o sr. tem? Eles são da região?
O empresário olhou para o assessor de imprensa, que, por sua vez, deu uma pigarreada. Mas foi o próprio dr. João quem respondeu:

– É claro que são daqui mesmo. Temos muitos funcionários, não sei ao certo, seria melhor o sr. perguntar para a administração. Acho que o sr. já tem muita coisa para escrever no seu jornal. Me perdoe, mas estou com pressa. O Roberto aí pode lhe mostrar a fazenda. Até logo.
Levantou-se e saiu, sem cumprimentar ninguém. Juca, que durante toda a entrevista estivera fazendo fotos do empresário, reparou que na sua mesa havia outra estatueta igual à que vira antes. Discretamente, aproveitando a saída do dr. João, tirou uma foto dela, bem de perto.

Como o prometido, Roberto levou os dois para conhecer a fazenda. Entraram em um jipe. Começaram a rodar por uma estrada. A paisagem era monótona e o gado, pouco. Roberto acabou parando perto de umas instalações que lembravam que, de fato, aquela era uma fazenda. Fred perguntou, então, sobre a mineração. Roberto respondeu que a área era interditada para visitas, por ser muito perigosa. Fred quis saber, pelo menos, em que local da fazenda o minério era extraído. Roberto disse que não sabia ao certo, já que nunca tinha ido lá.
– Sei apenas que não é perto daqui – e encerrou o assunto.

Na volta, ao passar por uma ponte, Juca virou-se para Roberto e perguntou:
– Está vendo lá longe, depois que o rio faz a curva, parece que são algumas construções...
– Não sei dizer o que é aquilo, disse Roberto. Talvez sejam os prédios administrativos da mineração.
Juca fez que acreditou. E fixou seu olhar na tela de LCD de sua máquina fotográfica. Ampliou a foto da estatueta. O rosto do homenzinho mostrava uma expressão de dor.

De volta ao hotel, em Belém, Fred contou suas preocupações a Juca.
– Tem coisas que não estão batendo nessa história. Você viu aquelas construções na fazenda, aquilo serve para quê? E, depois, onde estava o gado? E as plantações? Tem coisa errada aí.
Juca não falou nada. Apenas pegou a sua máquina e mostrou as fotos das estatuetas. Fred coçou a cabeça:
– Nunca vi nada igual. Quem fez isso deve estar sofrendo...
Juca concordou. E depois falou:
– Tenho uma ideia. Vamos sobrevoar a fazenda para tirar todas as dúvidas sobre aquelas construções e sobre a mineração.
– É isso aí. Já vou ver se arranjo um avião.

CAPÍTULO 4


Mas na manhã seguinte, Fred não encontrou Juca no saguão do hotel. Ele havia alugado um monomotor para sobrevoar a região da fazenda à tarde e ficou preocupado com a ausência do amigo.
– O negócio é esperar –, tentou se consolar.

Juca só apareceu depois do almoço. Entrou no quarto de Fred e foi dizendo:
– Achei o cara! Achei o cara!
Fred não entendeu. Puxou o fotógrafo pelo braço:
– Calma aí. Que cara é esse?
– O cara que fez aquelas esculturas... Eu sabia que aquilo tinha a ver com aquela fazenda... Peguei a foto, falei com um monte de gente e saí procurando. Finalmente achei. O cara agora é um artesão, vende seus trabalhos, esculturas, é claro, mas ele viveu na fazenda e contou uma história incrível. Eu fotografei e gravei tudo, mas em resumo é o seguinte: faz uns três anos, ele veio de Goiás para cá e ficou sabendo que estavam precisando de gente para trabalhar na fazenda. Ele acabou indo lá, mas nem precisou de muito tempo para se arrepender. Segundo me disse, aquelas construções são o alojamento do pessoal, mais de mil pessoas, que ficam praticamente confinadas naquele fim de mundo, ganhando uma miséria e trabalhando nas piores condições. Gastam tudo que ganham lá mesmo, em comida e outras coisinhas. Só que é tudo muito caro e eles vão se endividando, se endividando e acabam trabalhando só para pagar o que devem...

– Mas isso é trabalho escravo!
– Chame como quiser, é assim que funciona. Ninguém, ou quase ninguém, sai de lá, porque não tem estradas, é só pelo rio. Mas isso não é tudo. A fazenda esconde uma mina de cobre, a céu aberto. Tudo que não se aproveita é jogado nos rios, não no principal, nos menores, que, segundo o nosso artista, estão todos poluídos.
– E ele ...
– Conseguiu sair de lá, teve sorte de ser socorrido por um barco que vinha para Belém, chegou aqui, ficou um tempo escondido e passou a viver de suas esculturas. Aliás, as esculturas que nós vimos na fazenda, me disse o Raimundo – é esse o seu nome –, acabaram com o dr. João porque um dos capatazes roubou dele. O nosso figurão deve tê-las visto, gostado e colocado para enfeitar o seu escritório. O Raimundo esculpia porque sentia muita dor e raiva por estar naquela condição. Disse que era uma forma de se libertar...

– Mas que história isso vai dar, hein?
– É isso aí! Vamos embora pegar esse avião que eu quero fotografar tudo de lá de cima.
E os dois saíram quase correndo para o aeroporto.

ÚLTIMO CAPÍTULO


O voo esteve normal até Fred pedir ao piloto que desse um "rasante" para ver a área dos alojamentos do pessoal. Foi aí que a aventura começou: Juca, que acabara de colocar a teleobjetiva na máquina, viu os guardas armados apontarem para o avião e gritou para o piloto subir até uma distância segura. Foi o que ele fez. E o que salvou as suas vidas.
A mina foi achada depois de alguns minutos. Não estava muito distante da sede da fazenda. Os rios da região também foram fotografados por Juca. Eles tinham praticamente tudo documentado.

Três dias depois, já estavam na redação do jornal. Fred havia escrito a reportagem. O chefe, a princípio, levou um susto com o rumo que a matéria havia tomado, mas depois não só a aprovou, como mandou que ela fosse a manchete de domingo: "Fazenda na floresta esconde escravidão". Podia não ser o melhor título, mas quem lesse ia gostar.

A exceção ficou com o dr. João Araripe das Neves, que se recusou a falar novamente com os jornalistas para dar a sua versão da história. Talvez ele estivesse se preparando para falar com a polícia.

FIM

Esta é uma história de ficção, portanto qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.

Carlos Motta é jornalista.
E-mail: cramotta@gmail.com



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